quarta-feira, agosto 29, 2007

Retrospectiva

A propósito da filiaçao traseira de Francisco Umbral, vale a pena versar um pouco sobre o tema.

Acho interessante reparar nos matizes do culto, profundamente latino. Eu diria que há uma diferença significativa no culto espanhol, italiano e, claro, o brasileiro. Há diferenças entre "el culo", "il culo" e "a bunda".


O espanhol é heterogéneo: ainda há alguns tipos de espanhol, e o seu interesse nem sequer tem muitas vezes por objecto principal o "culo". Eu diria que para o espanhol, trata-se, antes de mais, de um objecto de posse, de "show-off". É um statement sexual da mulher (que desse somente aqui se trata), como o sao os seios; será o equivalente feminino do orgulho macho no "paquete". Nao se deve abordar a psique espanhola sem levar em conta o orgulho. Nota de rodapé para os catalaes, ou antes para as catalas, que sao algo diferentes, apesar de tudo. Mais gentis que a espanhola média, fazem já a transiçao para o "culo" como parte do "sagrado feminino".

O que nos leva, claro está, a Itália. Para a italiana o "culo" é exactamente decorrente de uma condiçao, sublime, de ser mulher. Faz parte do conjunto de um ideal de perfeiçao e beleza. Nao é exagerado, nao é lascivo, nao é actor nem chamariz, existe como parte de um todo, e é idealmente harmonioso. Nao se o pode dissociar de uma postura, de um olhar (sguardo), de umas pernas, de uns cabelos. Nem sequer da inteligência de uma mulher. De qualquer forma, como em castelhano, o rabo italiano é masculino no artigo: "il culo", nao tanto pela vertente da posse, eu diria, mais bem pelo culto intenso, mais assumido que o espanhol. Acontece que na psique ialiana o rabo é já objecto de arte, merecedor da típica admiraçao à distância. De assinalar também a existência de um certo carinho, patente no diminutivo "culetto".


Chegamos entao ao caso mais célebre, o brasileiro. Entra a bunda. Repare-se que, desde logo, a bunda é, pela primeira vez nesta discussao, o rabo no feminino. Ou seja, o brasileiro, mais que a posse espanhola, ou a admiraçao italiana, tem verdadeiro amor pela bunda. É um património querido, um ente, quase. E, como tal, nao é de estranhar que seja a bunda brasileira tao heterogénea, tao diversa. Os vários tipos remetem, exactamente, para as várias personalidades. O brasileiro fala com a bunda, conhece-lhe os pormenores, simpatiza com a bunda: mais que possuí-la, mais que admirá-la, o brasileiro brinca com a bunda. Nela vê luxúria ou amor, mesmo outros sentimentos, dependendo do momento. A bunda dá para tudo, há bundas para todos, e é a regiao do corpo mais experimental. Ao contrário do caso italiano, acontece no Brasil que a bunda tem classe social. Quer dizer, há um tipo de bunda mais "de baixo", favelada, e um tipo de bunda mais "de cima", menina-bem. Quase diria que a bunda brasileira afere a inteligência, o temperamento, o "tipo" de mulher. Pessoalmente, acho esse facto encantador.



E a portuguesa? E o português (o apreciador, lembrem-se do que escrevi acima)? Bom, estaremos mais próximos do caso brasileiro, é certo. Mas só no Portugal urbano. Lembrar somente que o Brasil é um imenso Portugal urbano, sem a história de quase 900 anos, sem o exíguo espaço que nos aflige. Ainda há um Portugal algo alheio a estes ditames do corpo, sobretudo porque a mulher portuguesa tem muita personalidade, e nao está disposta a ser levada em conta pelo seu corpo, mais que pelo carácter ou inteligência. Para mais vivemos numa altura em que elas dominam os cursos universitários, trabalham mais e melhor que os homens. Sao autónomas e senhoras de si, e nao têm paciência para homens que andem aí a admirar qualquer mulher. Com uma economia que oferece magras perspectivas, uma sociedade com poucos exemplos, gasta e velha, nao há ego que resista. Nao surpreende, pois, que os homens portugueses tenham medo de dizer um piropo, medo de uma abordagem que nao sob o ruído ensurdecedor da discoteca. Elas mandam, ponto final. Mas, enfim, essa é uma outra história. Voltando atrás (literalmente) há que reconhecer ao menos bastante potencial às portuguesas. Mais nao fosse por aquele toque no coraçao: "é cá da terra, tem outro encanto".


Termino somente com o poema de Carlos Drummond de Andrade, que trouxe a bunda à poesia, como só um brasileiro, que fala com a bunda, poderia fazer:

A Bunda, Que Engraçada

A bunda, que engraçada.
Está sempre sorrindo, nunca é trágica.

Não lhe importa o que vai
pela frente do corpo. A bunda basta-se.
Existe algo mais? Talvez os seios.
Ora — murmura a bunda — esses garotos
ainda lhes falta muito que estudar.

A bunda são duas luas gémeas
em rotundo meneio. Anda por si
na cadência mimosa, no milagre
de ser duas em uma, plenamente.

A bunda se diverte
por conta própria. E ama.
Na cama agita-se. Montanhas
avolumam-se, descem. Ondas batendo
numa praia infinita.

Lá vai sorrindo a bunda. Vai feliz
na carícia de ser e balançar.
Esferas harmoniosas sobre o caos.

A bunda é a bunda,
redunda.

(in O Amor Natural, Carlos Drummond de Andrade)

P.S.: Aos amigos que se espantem com a heterodoxia deste post estarei disponível para discussao no devido tempo. Peço contudo que se leia o texto, mais do que atentar somente nas imagens. Por mais interessantes que estas possam ser.