sábado, setembro 13, 2008

Reading List 4

"On Art and Life", de John Ruskin (1819-1900). Este livro está, na realidade, composto por duas reflexões em separado, que são, de facto, dois capítulos de outros dois livros, aqui coligidos ao abrigo desta colecção "Penguin Great Ideas". "The Nature of Gothic" fazia originalmente parte do livro "The Stones of Venice", vol. 2,, publicado em 1853 e "The Work of Iron in Nature, Art and Policy", um seu 'lecture', foi publicado no "The Two Paths", em 1859.

Como terão facilmente depreendido, o primeiro é uma reflexão sobre o estilo gótico, ao passo que o segundo versa sobre o ferro, como material essencial para uma sociedade, uma nação, nos três domínios que a caracterizam: o Arado, a Corrente, e a Espada (o Pão, a Lei e a Guerra). Devo dizer que achei particularmente interessante a sua visão da beleza que existe no estilo gótico, por natureza imperfeita, em oposição à beleza clássica, grega, de necessária perfeição.

De qualquer forma, a princípio, e durante uma boa parte do livro, parecia estar perante um desilusão. Havia ali considerações sobre um estilo arquitectónico e uma matéria-prima que aborreciam bastante. Percebi, contudo, que era em apartes, considerações mais abrangentes, que Ruskin mereceu ter estes dois capítulos sob a égide do 'Great Ideas'. Atentemos nestas duas passagens, a primeira relativa ao primeiro capítulo, de 1853:

"It is verily the degradation of the operative into a machine, which, more than any other evil of the times, is leading the mass of nations everywhere into vain, incoherent, destructive struggling for a freedom of which they cannot explain the nature to themselves. Their universal outcry against nobility, is not forced from them either by the pressure of famine, or the sting of mortified pride. These do much, and have done much in all ages; but the foundations of society were never yet shaken as they are this day. It is not that men are ill fed, but that they have no pleasure in the work by which they make their bread, and therefore look to wealth as the only means of pleasure. It is not that men are pained by the scorn of the upper classes, but they cannot endure their own; for they feel that the kind of labour to which they are condemned is verily a degrading one, and makes them less than men."

e a segunda retirada do segundo capítulo (1859):

"By far the greater part of the suffering and crime which exist at this moment in civilized Europe, arises simply from people not understanding this truism - not knowing that produce or wealth is eternally connected by the laws of heaven and earth with resolute labour; but hoping in some way to cheat or abrogate this ever-lasting law of life, and to feed where they have not furrowed, and to be warm where they have not woven. (...) The law of nature is that a certain quantity of work is necessary to produce a certain quantity of good, of any kind whatever. But men do not acknowledge this law; or strive to evade it, hoping to get their knowledge, and food, and pleasure for nothing: and in this effort they either fail of getting them, and remain ignorant and miserable, or they obtain them by making other men work for their benefit; and then they are tyrants and robbers."

Segunda metade do séc. XIX. Pois é.

Kilometragem em língua inglesa: 402 páginas (inclui 'Reading List 2', de novo por picuinhice; "On Art and Life" tem 98 páginas).

sexta-feira, setembro 12, 2008

Rigth Here, Right Now 1

Adoro passar férias em Setembro, longe da confusão lisboeta. Aliás, deixei o meu secretário pessoal instruído para responder, com toda a cortesia, às requisições lisboetas que houver no entretanto.


Não há nada como receber os nossos amigos em férias. Hoje ao almoço revi esses, de longa data, que vão pelo nome de Trincadeira e Aragonês. É sempre um prazer estar com eles.

quinta-feira, setembro 11, 2008

On Hold

Uma coisa que me faz impressão nas estruturas estatais e proto-estatais (por exemplo, os partidos políticos) são as expectativas. Muitos portugueses não o saberão, mas neste momento, há muita gente nessas estruturas que investiu muitíssimo das suas vidas - o seu tempo e energia - em expectatias. Nomeadamente, em expectativas de ocuparem melhores lugares na hierarquia, na expectativa de estarem mais perto de um qualquer micro-poder, mais perto de uma qualquer fonte de financiamento. Há muita gente mesmo. Não é gente que tenha investido a vida em esforço, trabalho, técnica. Antes, procurou ganhar créditos. Esteve tanto tempo ali. Foi sempre ela que tratou. Está em tal lugar na ordem para. A esta gente passa ao lado a vertigem, a competitividade do mundo de fora, do mundo privado. Elas apostam nos seus créditos, e têm essa expectativa - que eu acho curiosa - de que se lembrem do que fizeram, ou passaram. Quer dizer, na sua mente não passa, realmente, a possibilidade de uma tabula rasa ou uma súbita dança de cadeiras que lhes roube todos esses micro-esforços diplomáticos, panegíricos, de pequenas acções, e os pulverize à sua nudez: a de não terem qualquer qualificação que seja para o mundo do trabalho. Um membro de um partido de 4ª linha, num concelho qualquer do País, espera que alguém, no futuro, se lembre de como ele foi sempre fiel ao partido, andou de café em café, a perguntar pelo cão deste, a perguntar pela saúde do outro, para ser o próximo a ser chamado para um lugar. Espera que esse "esforço de fidelidade" seja assim compensado. É claro que, quando o não é, há sempre uma nota ou outra que não convém divulgar...

Mas o chocante, realmente, é como as pessoas investem as suas vidas nestas expectativas de integração nas estruturas não-privadas da sociedade, assim se escusando a trabalhar verdadeiramente. E é chocante também como os portugueses que pagam essa factura (não me posso incluir, por ora) toleram isso. É que nada nestas estruturas estatais e partidárias é movido pelo mérito pessoal, antes por uma história de dedicação, amor ou pseudo-amor à camisola, e, no fundo, a mais simples e lusitana ambição de todas: a de um posto pouco exigente, que dê pouco trabalho, que exponha e responsabilize pouco, confortável, o mais duradouro possível e o mais bem pago possível.

Disclosure: Esta crítica, faço-a não estando eu próprio inserido no mercado de trabalho, o que sei me retirar legitimidade. A motivação que me anima, mais que justiceira (embora em parte também seja) é a de retratar. E a de permitir atentar, a quem leia o texto, nesse facto singelo, que é o de uma pessoa investir a sua vida em pequenas acções à espera que se lembrem delas, quando tudo pode mudar de repente. E isso a todos deve dar que pensar.

O Tamanho do Capricho

Acho que a ambição de ter algum dinheiro na vida, no meu caso, tem mais a ver com a satisfação de pequenos caprichos. Não sou pessoa de grandes caprichos. Mas apreciava muitíssimo ter os meus pequenos garantidos.

Every Move You Make

Há grandes vantagens em viver com os pais. Sejamos francos: desde logo financeiras. Talvez porque a minha é uma geração de tesos. Seria bom que, não tendo nós princípio de cheta, a cáfila que vive à conta dos nossos pais (não, agora não estou a falar de nós, filhos), enche os bolsos, e gere o País (antes me refiro ao povo/polvo do Estado!), ao menos fizesse as coisas por forma a não haver demasiados problemas. Mas isso era pedir demais não era?

Depois, viver sozinho é duro. Tem o seu encanto inicial, de liberdade, mas, sobretudo se se trabalha para poder viver sozinho, a certa altura há uma erosão. Somos animais gregários, quanto a isso nada há a fazer.

Também não desdenhamos os seus conselhos. E eles têm muitos dos defeitos e virtudes que teremos nós próprios no futuro. Estamos sempre a aprender, embora os mais inteligentes de nós se recusem a ser cópias.

Mas, caramba, há grandes desvantagens também. Nomeadamente, o escrutínio constante, e o ser chamado à pedra pelas coisas mais exasperantes. Algumas delas passam o limite do respeito pela privacidade, pelo indivíduo que nos consideramos já. São as coisas mais pequenas, mais insignificantes. Faz tudo parte de um registo, de hábitos, de gastos, de frases, de saídas e entradas. Mas porquê? Porque não se interessam eles por outros temas - infinitamente mais apaixonantes - que os próprios filhos, nesta idade em que eles dão mais que bem conta de si?

Aliás, até temos para nós que somos os maiores. Que já andámos por sítios, vimos gentes que lhes provocariam pele de galinha, que já passámos por experiências que, no tempo deles, seriam impossíveis. E que, mercê da era tecno em que fomos criados, já vimos coisas, sites, filmes, etc. que lhes fariam lavar os olhos mil vezes se com tal se deparassem. Somos os maiores, realmente.

O ideal, suponho, seriam pais muito protectores no início da vida, e depois uns pais ultra-liberais (e já agora, ricos e generosos) para mais tarde. Mas não, geralemente os pais possessivos não deixam de o ser e os pais ausentes também não. Não há meio termo. E quem se lixa somos nós, os filhos.

O Doping da Palavra

"José Mourinho rientra nella categoria eletta degli allenatori motivatori alla Helenio Herrera, di quelli cioè capaci di convincere con il doping della parola un brocco come Tagnin di essere il migliore al mondo." Aqui.

Já há bastante tempo que eu próprio - sem muita cultura de 'Calcio' - sabia que a comparação com o HH aí viria, mais dia menos dia. Para quem não se lembrar, Helenio Herrera, argentino, e histórico treinador de Barça e Inter, é tido como o criador do 'catenaccio'. Chegou, também, por curiosidade, a treinar o Belenenses, numa altura em que o clube teria outro patamar.

Mundo Cão

O mundo que o 11 de Setembro criou é um mundo mais cínico, mais sacana, a todos os níveis. É um mundo mais individualista e egoísta. Contribuiu para este estado de coisas em que se diz: "- Vamos criar uma empresa!" "- Não, não te metas nisso. Os chineses andam aí a limpar a matéria-prima toda. E depois andas uma vida inteira a trabalhar quando os tubarões fazem milhares de milhões com off-shores". "- Então, vamos viajar!", "- Pois, mas lembra-te de deixares o teu testamento, que esses terroristas não brincam". "- Vamos... vamos cultivar-nos. Saber mais de Ciência, História, Cultura!", "- E quem é que te paga isso?". "- Tudo bem. Mas... vamos à procura de um amor!", "- E achas que isso vai durar quanto tempo". "- Mas eu sonho em ter filhos!", "- E vais deixar-lhes este mundo?".

Et Semper Idem

Passam hoje 7 anos desde o 11 de Setembro de 2001. 7 anos. Parecem já 7 anos? A mim não. Mas eu sei que foi um princípio, um princípio de uma história que pode nunca acabar mesmo. Quando os EUA chegarem ao cabecilha odiado, qual medusa, outros surgirão. Não há um inimigo claro. E isso, na história da Humanidade, coloca-nos em confronto com uma guerra cega. Uma guerra em que sofremos - todos de alguma forma sofremos, embora muito mais os americanos - sem antevisão clara do fim. Não parece ser possível uma vitória absoluta. Quando se pensava que a guerrilha era o grau zero da guerra, o terrorismo puxou dos galões. É o terrorismo o grau zero da guerra. É um inimigo difuso, e pior, um inimigo potencialmente inderrotável. O que adia indefinidamente aquilo que caracterizou outras guerras: o fim - essa redenção colectiva, essa harmonia e aproximação, essa paz. Assim... assim está sempre lá - no inconsciente, a existência gravíssima de um conflito.

Detesto, abomino assumir esta postura mais pessimista, mas seria desonestidade intelectual não o fazer: esta é uma guerra que não nos dará paz tão depressa. Em todos os sentidos da expressão.

Intoxi-Lição

Poucas coisas como uma intoxicação alimentar nos dão a tão necessitada humildade. Porque se a cabeça pensa "- Vou dar a volta ao Mundo, conhecê-lo e às pessoas que o fazem. Vou percorrer montanhas, escapar-me em aventuras, conhecer amigos, mulheres", a barriga responde: "-Não... Não tenhas ideias. Ficas mas é aí agarradinho à porcelana para veres como, no final, nem te lembras sequer de que terra és...". Auch.

Queirosiano

"Da árvore que caiu ao chão qualquer um pode fazer lenha" é um sábio ditado espanhol. Porque não é o meu estilo assim fazer lenha, vou pedir aos leitores do Generosità (Zé Carlos: um beijo para tua mana) que acreditem quando digo (digo, escrevo) que há muito que estava para fabricar um post a dizer que sou contra Queirós na selecção. E não gosto de o fazer depois da derrota contra a Dinamarca.

A propósito, foi uma bela derrota. Fazem tão bem esses banhos de humildade... "Princípios do Leva-Trombismo" é um livro que recomendo às gentes da selecção, de vez em quando. Diz que é do Masoch, mas eu, por acaso, nunca li.

Agora, eu também não gostava de Scolari. Que vos dizer? Sou um gajo exigente. E até Monica Bellucci não se lembrar de responder às mensagens, também não me vou comprometer com ninguém.

Bom, mas falando do Queirós. Digo, falando mal do Queirós. O homem - e eis o problema - é difícil de prescrutar. O que motiva Queirós? Não será uma fé religiosa, suponho. Também não um amor a algo que o levante da cama todos os dias. Mais bem parece, entre o sorriso mal-consentido, com espécie de ira sempre pronta, que o homem tem um ajuste de contas de algum tipo a fazer. Digamos que um ressentimento antigo. Com o quê não sei - não me perguntem. Mas é o que eu diria. Basicamente, não deslindo em Queirós os ânimos certos para comandar... o que valeria 'peanuts', caso o homem fosse bom naquilo e ganhasse. Mas... com todo o respeito, sr. prof., não parece ser isso que está - ou vá - acontecer pois não?


Não responde, não é? Eu cá, que me desculpem, Queirós continuo com o Eça de, não Carlos.

La Isla Bonita

É certo que elogiei o "Confessions on a Dance Floor", que achei muito acima do registo médio de Madonna. Talvez eu até nem a aprecie especialmente. Mas a melhor música dela, a mais singela, mais melódica, menos sofisticada é esta. Eu sei, eu sei. Mas é a que eu escolho. E nos meus posts mando eu.

Gollum Nutrido

Que ele não era exactamente apolíneo já se sabia. Mas agora, dizerem dele que é um "Gollum nutrido", não - isso é cruel demais.

quarta-feira, setembro 10, 2008

Realidade Nacional

Custa-me a admití-lo, mas desde há uns tempos que os jogos da selecção me aborrecem muitíssimo. Simplesmente, deixei de ter paciência. Antes havia a alma de um Rui Costa, a filigrana do futebol de Figo. O esforço de João Pinto. Agora, há somente uns putos estúpidos, deslumbrados e arrogantes, que se pavoneiam pela selecção, quando lhes dá jeito, noutras envolvem-se, mas com pouca profundidade.

Ninguém sente a selecção até ao osso, como ainda há pouco tempo acontecia. Todos querem é brilhar mais, um pouco mais, se tanto. Não há um maestro, um capitão. Que Cristiano Ronaldo seja feito capitão, passe a sua qualidade, é para mim uma piada.

Mas enfim, é a selecção que temos. No livro que falei, no post 'Reading List 3', a autora termina com uma frase que lhe terá dito o 'capitão da indústria' António Champalimaud: "para quê defender o capital nacional, se o país vai acabar?". Supondo que, em vez de catastrofismos, Champalimuad se referrisse argutamente a esta era globalizada, em que o dinheiro, poder e contactos só mudam de língua e os países se parecem distinguir por meros centros regionais, legislativos e executivos, para quê querer uma selecção de futebol, se o país já não existe?

O Cliente Que Tem Sempre Educação

Deve haver poucas coisas piores que ter um tratamento 'à função pública' de entidades que não são função pública, que são Estado, a que, neste caso, inclusive, se lhes paga. Há ainda demasiado nariz empinado, a tentar, a procurar o limite de quem, por educação (e talvez outras motivações) tem pudor em jogar a carta do 'é o meu dinheiro'.

terça-feira, setembro 09, 2008

Reading List 3

"Terramoto BCP", de Maria Teixeira Alves. Uma cronologia lúcida, rigorosa e inteligente de todas as peripécias, todos os meandros que explicam o curso do BCP nos últimos anos.

Surpreendente na profundidade, não só das intrigas e enredos, mas também no arguto perfil psicológico dos intervenientes (entre as várias considerações sobre o célebre comendador escolho esta, acerca dos 'amigos': "(...) tem da amizade uma ideia paternalista"), e mesmo não intervenientes ("Marcelo Rebelo de Sousa acima de tudo é um vendedor de ideias, algumas certas, nem todas. Mas é tolerável que quem seja chamado a falar sobre tudo, com o tom crítico que lhe é esperado, dê, de vez em quando, uns tropeções. Depois é inteligente demais para se levar a si próprio a sério, o que explica que ponha a generosidade à frente da honestidade intelectual.").

Para quem tem interesse em conhecer o maquiavelismo do mundo financeiro português - e eu sei que há alguns de vocês que têm - leitura fundamental.

Kilometragem em língua portuguesa: 418 páginas.*

*Contagem que inclui, por picuinhice, o livro 'Reading List 1' ('Terramoto BCP' tem 222 páginas)

domingo, setembro 07, 2008

Terra de Cegos

Uma coisa que eu acho extraordinária na glorificação que a nossa sociedade faz de futebolistas: aquilo é fácil. Acreditem: jogar à bola é fácil. Porque quem tem qualidade pessoal, tem-na em qualquer mester, o de jogar à bola, que me desculpem a expressão é cagativo.

Porquê? Porque meus caros, fintar é a satisfação imediata - é a vitória logo ali. Muitíssimo mais complexo é vencer noutros campos de batalha. Difícil é ser como nós, estudantes de algo, mal ensinado por uma sociedade a quem não interessa que os jovens saibam demais, para ir disputar lugares contados, em estruturas laborais espartilhadas por corporações. Não, que me desculpem. O que o Cristiano Ronaldo faz, tendo qualidade pessoal, é fácil. Difícil é preserverar como nós, andar a tolerar tudo aquilo que nos parece fundamentalmente errado, lançar garrafas para o oceano, sem saber se alguém as ler, lançar os nossos esoforços e dores no futuro sem saber se valerão de algo.

Difícil é ter uma profissão simples nesta sociedade 'cuidado onde pisas'. Fintar não: fintou, está passado, vitória, ponto. Há a satisfação logo ali. Nós... nós temos que adiar a satisfação demasiado tempo. E alguns não aguentam mesmo, essa mera promessa de alegria, face às pressões e dores do presente. Cedem.

Não, o que o Cristiano Ronaldo faz é cagativo. Jogar à bola é cagativo. Sendo bom, claro. Ter qualidade, potencial, e investí-lo numa profissão intelectualmente exigente, numa sociedade desconfiada e castradora, isso sim, é difícil. Fintar idiotas até eu consigo fazer. Ter o nosso ego, euto-estima, dependente de coisas muito menos imediatas é que custa. E eu não aceito a estupidez de um mundo, de um Portugal que não percebe puto de nada, que não percebe a diferença.

OPAsedelo

Todos vocês já viram, devido à crise recente, imagens das reuniões das assembleias do BCP. Há ali uma reunião solene de solenidades, de homens com ar monásticos, misturados com homens de inteligência muito reflectida, muito epicuristas, muito raposos. Há por ali muita conaissance, muita ironia, finura.

Tudo aquilo se junta num ambiente certamente difícil de se estar à vontade. Como que bacteriologicamente puro. Há ali uma guerra tácita de sensibilidades no píncaro, um jogo – exigente – de pormenores, e muito olho para o pormenor. Suponho que essa capacidade de jogar o jogo psicológico faz parte do que na banca se chama ‘trabalho duro’.

Pois bem, perante essa assépssia eu às vezes consigo ver além da porta que se vai fechar, de entre em breve. Depois do disparar dos flashes, das filmagens para a televisão, tudo sob o olhar vigilante de Paulo Teixeira Pinto, os jornalistas são informados que devem sair. ‘Meus senhores…’ – alguém dirá. ‘Por favor…’.

Mesmo antes que a porta se feche um deles acabou de beber água do seu copo. E, ainda com a mesa impecavelmente composta, poisa o copo, com receio que escorra uma gota, e que algum dos outros note. Se tivesse mais que um som abafado ao encontrar a mesa, seria ainda sumido pelo da porta, que se fechou naquele preciso instante.

“Porra. Tava a ver que os gajos nunca mais iam embora. António: bota aí a música, caraças.”, diz Paulo, em jeito de alívio.

“Falas bem, puto. Falas bem. Tenho aqui um granda som. Escuta isto.” António coloca um CD numa qualquer entrada, oculta à mesa, e clica no rato. Ao olhar concentrado segue-se um semi-sorriso.

Paulo reconhece de imediato a melodia. “Royalistic… Granda som, chaval. Deixa-me cá mas é desapertar a gravata, que isto está a asfixiar-me. E vou tirar estes óculos. Olhem lá, o que é que a gente tem que decidir hoje?”

“Acho que é aquela cena de expandir os balcões na Polónia.” Responde-lhe António.

“Ui. Não podemos decidir isso prá semana, Toni?”

“E pah, convinha ser já hoje, que depois os gajos dos económicos metem essa notícia ao lado dos nossos maus resultados do trimestre.”

“Pois é, tens razão. Então mas isso o deve ser ali o Zé e o Pipo Pinhal a decidir, não?” Paulo envia um olhar para os dois, que falavam, perto do móvel com a televisão, do outro lado da mesa, para onde se tinham levantado.

“Nem mais.”

“Ouviram?” Paulo chama-os ao fundo da sala. “O que é que vocês tão a fazer?”.

“Tamos aqui a começar o processo de decisão. Eu digo para expandir, mas o Pipo é contra. Só há uma maneira de tirar teimas: melhor de 3 jogos de PES.”, responde José.

“Ok, boa.”

“Shotgun no Messi!” grita de repente Filipe Pinhal.

“Fogo, Pipo. Ficas sempre com o gajo. Fica lá com o Cristiano desta vez.”, protesta José.

“Não. Shotgun é shotgun.” Não há grande prazer de vitória sequer em Filipe – aquela era a regra, e nada mais havia a dizer.

“Ok, pronto. Bora lá”, anui José.

Paulo ri-se, uma outra pessoa, agora sem os óculos ovais: “Estes gajos… Enfim. Viste-me ali a dardejar olhares para os gajos, Toni? Adoro fazer aquilo. Parece que sou o Ciclops, a mandar raios. É para manter tudo na ordem. Como quem diz [mão aponta para o espaço]: ‘hei – eu estou atento’”

“Brilhante, Paulo. Brilhante.”

“E pah… Mas que cheiro é este” interrompe Paulo de repente, transfigurando-se. “Alípio, és tu?”. Alípio é o único perto deles, naquele topo da mesa, e está comprometedoramente calado. “Não me faças essa cara de santo. Até parece que era aprimeira vez!” Alípio esboça uma pequena alteração facial, mas depois continua a jogar Minesweeper no seu PC.

“Olha pró Christopher.” Paulo voltou-se novamente para António. Olham agora os dois para Christopher, que dedilha o telemóvel. “Deve ser outra vez a namorada… Christopher! Deixa lá a gaja um segundo, meu. Fogo. Granda melga.” Paulo sorri. “Aquele gajo com as miúdas…” Christopher continuou, andando e teclando, até responder “Isso é só dor de cotovelo.”

“O que é que vocês estão aí a ver no PC?” Paulo dirige-se agora ao grupo de cinco administradores concentrados em frente a um dos écrans, em que suspiros, silêncios e pequenos risos se misturam de forma suspeita com os olhares fixos no écran – sem no entanto haver um silêncio que seja longo demais. Até que se riem todos, e desviam o olhar enfim. “Mete o outro, mete o outro”, alguém diz. “Não me encharquem o sistema de vírus, hã?!” avisa Paulo.

De repente, entra pela porta adentro João Baião. “Olha quem ele é. Tás bom João?”, é cumprimentado.

“Tudo na maior.” Responde efusivamente João Baião. “Vamos lá animar isto.” Veste um estranho fraque branco, brilhante.

De repente entra um macaco falso e uma série de bailarinas pela sala. Nenhum dos administradores estranha o facto.

João Baião tem na mão um microfone. Começa a cantar: “O Big Show está no ar…” Há uma música aos berros a que dançam todos.

“Ueh, ueh!”, gritam ritmadamente. “Venha cá.” João Baião dirige-se a alguém. Seria a mim? “Sim, você, pequeno accionista. Venha cá.” A cara de João Baião parece agora maior. “Não saia daí. Ainda não está a hora de ir à cada de banho mandar a sua mais-valia e a credibilidade da CMVM pelo cano abaixo. Não saia daí!”. “Ueh! Ueh!” gritam todos na sala agora diferente, toda branca e fortemente iluminada.

Acordo de repente. Que sonho estranho... Deve ter sido dos amendoins. Nunca se deve misturar amendoins com OPAs. Fica-me de lição.