sábado, dezembro 15, 2007

Natal, Natais


Natal à Beira-Rio


É o braço do abeto a bater na vidraça?
E o ponteiro pequeno a caminho da meta!
Cala-te, vento velho! É o Natal que passa,
A trazer-me da água a infância ressurrecta.

Da casa onde nasci via-se perto o rio.
Tão novos os meus Pais, tão novos no passado!
E o Menino nascia a bordo de um navio
Que ficava, no cais, à noite iluminado...

Ó noite de Natal, que travo a maresia!
Depois fui não sei quem que se perdeu na terra.
E quanto mais na terra a terra me envolvia
E quanto mais na terra fazia o norte de quem erra.

Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir-me
À beira desse cais onde Jesus nascia...
Serei dos que afinal, errando em terra firme,
Precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia?

(David Mourão-Ferreira)

A Brincar Comigo

Estou a comprar gravatas numa loja da especialidade. Passo os dedos pelos padrões e matizes, insatisfeito. Sou muitíssimo exigente nesse simples acessório... Adoro gravatas, nada a fazer. Nisto, coloca-se a meu lado um rapaz, da minha idade suponho, com um ar distraído e desgranhado, que vinha com a namorada, e andava a escolher as gravatas no módulo "chuchuzinho, gostas desta?". Não é que ele dissesse isso, mas é somente a classificação que eu uso para os casais nefelibatas e... chatos.

Ao escolher as gravatas, deixa, subitamente, cair ao chão uma enorme quantidade. Eu, que estava ao lado, por reflexo, apanhei-as. "Obrigado". Não tem de quê, pensando eu, nem olhando para ele sequer, embrenhado nas "minhas" gravatas, pensando como seria possível deixar cair tantas ao chão. Eis quando, pouco depois de as recolocar, rolam, gozonas, mais umas dez gravatas ao chão, batendo a sua placa-cabide no chão, com um barulho denunciador. "Mas será possível? Que grande trapalhão". Apanhei-lhe de novo as gravatas (por qualquer razão ele demorava a fazê-lo, deliciado com a sua própria trapalhice: "chuchuzinho, já me viste isto?"), pensando que, sendo eu próprio pouco hábil tantas vezes, havia gente bem pior. Ele ficaria de referência para a minha próxima situação constrangedora.

Mas nem tive tempo de saborear esse pensamento, porque faltava-lhe ainda deixar cair um outra gravata. Três vezes! Três vezes é demais, é um teste à minha cortesia. "Amigo, eu para esta nem me mexo", não lhe cheguei a dizer - fiquei-me somente pelas minhas gravatas. Lá se riu ele com o "chuchuzinho" e a apanhou. É que eu gosto de ser prestável e cortês, mas três vezes já é Deus a brincar comigo, já há contornos de ira. Chega.

É claro que Deus sabe melhor, e, pouco depois, sou eu quem deixa cair a placa-cabide de uma gravata ao chão (só isso, apesar de tudo), mas com esse barulho como quem diz: "não penses que não te acontece a ti". Raios.

quinta-feira, dezembro 13, 2007

O Dito Por Não-Dito

É no nível de "goes without saying" que uma pessoa também se define. Aquilo que observa sem reclamar, aquilo que respeita, sempre respeitou. É no não-dito, na forma como são preenchidas as lacunas, que aprendemos sobre alguém. E, não raras vezes, chegamos à conclusão de que "sometimes less is more" - há quem, dizendo pouco, diga o fundamental, mantendo uma coerência discreta.

quarta-feira, dezembro 12, 2007

Se Os Não Podes Derrotar...

1º Caso

Há dias pediram-me um livro para fotocopiar. Tendo nascido entre livros, tenho um respeito ancestral pelo objecto. Sou da tribo que sente o cheiro, o tacto, que detecta os matizes nas folhas, às vezes mesmo na letra. Ou, pelo menos, era - que hoje, não sei se condicionado pelo meu curso, se por outras razões, vejo-me a ler bem menos que aquilo que gostaria. Mas sobre o prazer da colecção de conhecimento, de vidas, nas nossas mãos, sobre essa quase luxúria do livro tentarei discorrer noutro post - que o merece.

Tenho respeito pelo livro, dizia. Acontece que no outro dia pediram-me justamente algo que eu detesto particularmente (e eu até nem detesto muitas coisas particularmente): fotocopiar um livro. Antigamente fotocopiar um livro era um acto inconcebível para mim: eu podia poupar em muitas coisas, (e, acreditem, nunca fui muito gastador, ou então fui inconsciente), mas preferia sempre investir no livro a fotocopiá-lo. É claro que, havendo bibliofilia por casa, as coisas eram mais fáceis de enquadrar, mas, ainda assim, acabava por ser uma opção.

Isto no que respeita a fotocópias para mim. Mas é maior o problema quando se trata de fornecer fotocópias aos demais a partir de livros meus. É que... o livro não é o mesmo. Eu costumava dizê-lo "esventrado" pela fotocopiadora. As páginas começavam a descolar de forma às vezes irreversível, e o livro parecia mais volumoso, mudado, estranho aos olhos de quem dele tanto gostava. É como ver perante nós um amigo querido que fez algo muito estúpido, que comprometeu o seu ser, a pessoa que nos era familiar (só um verdadeiro bibliófilo aceita esta comparação desmesurada).

Portanto, quando me pediram para fotocopiar um livro meu, essa alergia voltou. Não tão intensa como antes - suponho que ando menos livresco e mais dado ao compromisso nesta questão. Ainda assim, pedi para só o emprestar em último caso. Houve um colega que se disponibilizou, e eu expus-lhe a situação, com a cortesia e honestidade devida, disposto, no limite, a rever a minha posição. Felizmente ele é muito mais racional que eu nessa matéria, e não houve qualquer problema.

2º Caso

Parte de um plano acarinhado há alguns meses, a minha irmã mais nova quer trazer a casa amigos estrangeiros que conheceu em Erasmus. Não estando eu por lá nessa altura, pensou, tomou como adquirido, que poderia usar o meu quarto para os alojar. Ora eu sei que estas coisas são importantes para ela, e, julgo eu, não tenho mais infantis prazeres de contrariar, mas... aquele espaço, sinto-o como meu, e disse-lho.

Não acho confortável a ideia de ter pessoas que não conheço por lá. De todo. Claro, para ela é tudo muito mais prático, tudo questão de mudar camas. É certo, racionalmente faz sentido. Mas, lá está, eu não sou muito racional em várias coisas. Sempre respeitei o espaço dos outros, nomeadamente o dela, e gosto que repeitem o meu. Mas, realmente, devo estar aqui contra os ventos deste tempo. São velozes, exigem o descartável, e abominam o apego. E eu gosto de algum apego.

Dou comigo a pensar nesta frase de Pacheco Pereira, neste artigo (espero não a citar descabidamente):

"A privacidade é, no seu melhor sentido, um dos adquiridos do mundo burguês, da casa, do espaço familiar ou reservado, da liberdade de mostrar ou esconder o que nos parece ser a última propriedade: o mundo próprio do ser."

Serei eu quem está a ser anacrónico, obsoleto, inflexível, precocemente envelhecido - "careta", "bota-de-elástico"? Ou ela que não está a respeitar um princípio básico, que "goes without saying"?

Dado estas duas situações, serei eu quem é socialmente disfuncional? Em confronto com todos os outros? Cultivando delicadezas risíveis, reclamando direitos hilariantes? Que insiste numa individualidade exagerada, que ninguém respeita - mas que também ninguém reclama? Com o tempo virá a resposta. Convinha não demorasse muito, para que um possa decidir se resiste ou se cede. E seguir em frente com a sua vida.