Todos vocês já viram, devido à crise recente, imagens das reuniões das assembleias do BCP. Há ali uma reunião solene de solenidades, de homens com ar monásticos, misturados com homens de inteligência muito reflectida, muito epicuristas, muito raposos. Há por ali muita conaissance, muita ironia, finura.
Tudo aquilo se junta num ambiente certamente difícil de se estar à vontade. Como que bacteriologicamente puro. Há ali uma guerra tácita de sensibilidades no píncaro, um jogo – exigente – de pormenores, e muito olho para o pormenor. Suponho que essa capacidade de jogar o jogo psicológico faz parte do que na banca se chama ‘trabalho duro’.
Pois bem, perante essa assépssia eu às vezes consigo ver além da porta que se vai fechar, de entre em breve. Depois do disparar dos flashes, das filmagens para a televisão, tudo sob o olhar vigilante de Paulo Teixeira Pinto, os jornalistas são informados que devem sair. ‘Meus senhores…’ – alguém dirá. ‘Por favor…’.
Mesmo antes que a porta se feche um deles acabou de beber água do seu copo. E, ainda com a mesa impecavelmente composta, poisa o copo, com receio que escorra uma gota, e que algum dos outros note. Se tivesse mais que um som abafado ao encontrar a mesa, seria ainda sumido pelo da porta, que se fechou naquele preciso instante.
“Porra. Tava a ver que os gajos nunca mais iam embora. António: bota aí a música, caraças.”, diz Paulo, em jeito de alívio.
“Falas bem, puto. Falas bem. Tenho aqui um granda som. Escuta isto.” António coloca um CD numa qualquer entrada, oculta à mesa, e clica no rato. Ao olhar concentrado segue-se um semi-sorriso.
Paulo reconhece de imediato a melodia. “Royalistic… Granda som, chaval. Deixa-me cá mas é desapertar a gravata, que isto está a asfixiar-me. E vou tirar estes óculos. Olhem lá, o que é que a gente tem que decidir hoje?”
“Acho que é aquela cena de expandir os balcões na Polónia.” Responde-lhe António.
“Ui. Não podemos decidir isso prá semana, Toni?”
“E pah, convinha ser já hoje, que depois os gajos dos económicos metem essa notícia ao lado dos nossos maus resultados do trimestre.”
“Pois é, tens razão. Então mas isso o deve ser ali o Zé e o Pipo Pinhal a decidir, não?” Paulo envia um olhar para os dois, que falavam, perto do móvel com a televisão, do outro lado da mesa, para onde se tinham levantado.
“Nem mais.”
“Ouviram?” Paulo chama-os ao fundo da sala. “O que é que vocês tão a fazer?”.
“Tamos aqui a começar o processo de decisão. Eu digo para expandir, mas o Pipo é contra. Só há uma maneira de tirar teimas: melhor de 3 jogos de PES.”, responde José.
“Ok, boa.”
“Shotgun no Messi!” grita de repente Filipe Pinhal.
“Fogo, Pipo. Ficas sempre com o gajo. Fica lá com o Cristiano desta vez.”, protesta José.
“Não. Shotgun é shotgun.” Não há grande prazer de vitória sequer em Filipe – aquela era a regra, e nada mais havia a dizer.
“Ok, pronto. Bora lá”, anui José.
Paulo ri-se, uma outra pessoa, agora sem os óculos ovais: “Estes gajos… Enfim. Viste-me ali a dardejar olhares para os gajos, Toni? Adoro fazer aquilo. Parece que sou o Ciclops, a mandar raios. É para manter tudo na ordem. Como quem diz [mão aponta para o espaço]: ‘hei – eu estou atento’”
“Brilhante, Paulo. Brilhante.”
“E pah… Mas que cheiro é este” interrompe Paulo de repente, transfigurando-se. “Alípio, és tu?”. Alípio é o único perto deles, naquele topo da mesa, e está comprometedoramente calado. “Não me faças essa cara de santo. Até parece que era aprimeira vez!” Alípio esboça uma pequena alteração facial, mas depois continua a jogar Minesweeper no seu PC.
“Olha pró Christopher.” Paulo voltou-se novamente para António. Olham agora os dois para Christopher, que dedilha o telemóvel. “Deve ser outra vez a namorada… Christopher! Deixa lá a gaja um segundo, meu. Fogo. Granda melga.” Paulo sorri. “Aquele gajo com as miúdas…” Christopher continuou, andando e teclando, até responder “Isso é só dor de cotovelo.”
“O que é que vocês estão aí a ver no PC?” Paulo dirige-se agora ao grupo de cinco administradores concentrados em frente a um dos écrans, em que suspiros, silêncios e pequenos risos se misturam de forma suspeita com os olhares fixos no écran – sem no entanto haver um silêncio que seja longo demais. Até que se riem todos, e desviam o olhar enfim. “Mete o outro, mete o outro”, alguém diz. “Não me encharquem o sistema de vírus, hã?!” avisa Paulo.
De repente, entra pela porta adentro João Baião. “Olha quem ele é. Tás bom João?”, é cumprimentado.
“Tudo na maior.” Responde efusivamente João Baião. “Vamos lá animar isto.” Veste um estranho fraque branco, brilhante.
De repente entra um macaco falso e uma série de bailarinas pela sala. Nenhum dos administradores estranha o facto.
João Baião tem na mão um microfone. Começa a cantar: “O Big Show está no ar…” Há uma música aos berros a que dançam todos.
“Ueh, ueh!”, gritam ritmadamente. “Venha cá.” João Baião dirige-se a alguém. Seria a mim? “Sim, você, pequeno accionista. Venha cá.” A cara de João Baião parece agora maior. “Não saia daí. Ainda não está a hora de ir à cada de banho mandar a sua mais-valia e a credibilidade da CMVM pelo cano abaixo. Não saia daí!”. “Ueh! Ueh!” gritam todos na sala agora diferente, toda branca e fortemente iluminada.
Acordo de repente. Que sonho estranho... Deve ter sido dos amendoins. Nunca se deve misturar amendoins com OPAs. Fica-me de lição.