Já o disse algures, neste blog: como humanos (e a expressão não é minha) somos, assustadoramente, um híbrido: somos chimpazés intelectuais. Às vezes mais chimpazés, outras mais intelectuais.
Serve esta recapitulação para vos falar daquilo a que chamo 'momento chimpanzé', no sentido de um assomo, justamente, da porção mais primeva e bruta da natureza humana. Ora, o momento chimpanzé é um desvio momentâneo do comportamento socialmente, correcto, para revelar instintos primários. Tem várias modalidades, mais ou menos graves, mas pretendo aqui tratar um favorito pessoal (porque nele incorro), perfeitamente inofensivo, e que chamarei de 'esgar ao decote'.
Antes de continuar, um apelo à vossa total
complacência estival para as linhas que se seguem. Muito obrigado.
Ora bem, o 'esgar ao decote' é um movimento súbito, um desvio da linha do olhar de um indivíduo do sexo masculino para o decote de outro indivíduo, do sexo feminino. Já estão escandalizados? Esperem que a coisa piora.
É assim mesmo. De repente a cabeça dele está descaída, os olhos fixos num decote à sua frente. E o pior é que, na maior parte das vezes, ela nota, e ele nota que ela nota. Que me perdoem a honestidade, mas todos sabemos que esses desvios involuntários, masculinos (creio que exclusivamente masculinos) para uma porção do corpo feminino - acontecem. Literáriamente, poderíamos dizer que o 'esgar ao decote' seria uma sinédoque: consiste em tomar a parte pelo todo. Os olhos ficam, desconcertantemente, presos numa área que lhes é interdita, e o tempo pára até ao ao alarme da vergonha (para quem ainda o possui).
A mim, que desde logo me confesso padecer deste mal, a coisa acontece-me sobretudo em jantares. De repente, desocupado de conversas com quem quer que seja, os olhos viajam por vários lugares, e acontece pararem, sem aviso, a sua viagem, no lugar onde não devem. É como se estivessem a fazer um 'scanning', à Robocop, do ambiente para registo na 'drive', e, na inocente contemplação, e não se apercebessem de que, num segundo, nada é já inocente - ou pelo menos aparenta não o ser.
Era uma vez, portanto, um ingénuo sr. Robocop, a inventariar, a 360º, a realidade em torno de si. 'Log In': [Prato], [talheres], [metade de carcaça com migalhas na mesa], [faca suja de manteiga], [prato com azeitonas], [copo de sangria meio-cheio], [toalha laranja], [jarro de sangria], [amigo X, ao meu lado, falando com amiga Y, à minha frente], [K falando para G, do doutro lado da mesa], [R olhando para o ménu], [D rindo-se com a amiga F], [quadro foleiro sobre a parede ocre], [candeeiro por cima da amiga Y à minha frente], [seios de Y], [seios de Y], [seios de Y?], [seios de Y!!!], [WARNING: DESVIAR OLHAR], [WARNING: DESVIAR OLHAR], [vazio embaraçado], [vazio embaraçado].
É aí que o Robocop tem um assomo de vergonha e culpa angustiante, que o levam a aumentar o ritmo cardíaco e a sudorese palmar. É aí que o Robocop é humano, demasiado humano. Tantos anos de Civilização a tentar programar o chimpanzé, e o chimpanzé foge assim, dança provocativamente em frente a nós, aproveitando um descuido.
Vem depois a fase do 'Damage Control'. Entenda-se: ela percebeu ou não? Geralmente, percebe sempre. É uma chatice. A questão que realmente me intriga na coisa é que este fenómeno embaraçante é absolutamente indiscriminado. Por exemplo, acontece-me sucessivamente com raparigas, ou mulheres, que não têm, para mim, um certo apelo. Quer dizer, que não são impactantes, não me despertam tanta curiosidade.
Vou só fazer aqui um aparte: para o caso de me considerarem pedante, perceber que eu, como rapaz (por um momento ia escrever homem) não tenho a pretensão de aguçar qualquer curiosidade feminina. Quer dizer, há algumas que se interessam - misteriosamente - mas depois, ao ver a peça mais ao perto, logicamente mudam de ideias.
Digo somente que, se fosse possível - e correcto - assignar um 'coeficiente de atracção' imparcial (sabendo eu do quão miserável é o meu, masculino), às mulheres, acontece-me mais esta 'fuga do símio' com as que não, tendo toda a dignidade de mulheres embora, não me obrigam a tão alta classificação. O que não deixa de ser curioso.