Nada como um regresso às raízes para limpar o lixo dos dias. Sobretudo o lixo que não é nosso, vem de fora, e não o podemos compreender. Vem de imagens, notícias, factos, canalhices, fantasmas que não nos pertencem, não são o nosso mundo, mas que, de alguma forma, procuramos encaixar nele.
Hoje ao almoço, degustação de uma magnífica morcela de arroz, seguida por outra, de sangue. Recém-preparadas, caseiras. De aspecto pouco recomendável para este mundo mesa-de-plástico-a-brilhar, ecrãs HD, ignorância religiosa, piada fácil, barata. De 'frivolidade du jour', mínimo esforço de compreensão, de enquadramento - de pessoas, valores, tempos.
Não há melhor exemplo disso mesmo que o
post que escrevi sobre o artigo de um jornalista inglês, que versava - a rédea solta - sobre a sexualidade (?) de Tintin. Sem conseguir perceber os elementos da sociedade do pós-guerra, da evolução das concepções sociais, do degelo continuado dos costumes (hoje talvez em sobre-aquecimento...), julgava parvamente, a talhe de foice. O Tintin usava uma boina foleira e calças estranhas? Não havia mulheres nas histórias? Não havia ponta de romance? A conclusão alarve - era homossexual...
Este mundo não tem tempo para nada, não tem tempo para se deter com pormenores, para pensar duas vezes nos factos, na sua origem, na sua causalidade. Não tem tempo para conceber uma herança histórica, sequer. Não tem paciência para o cinzento - quer o preto ou o branco. E quere-o já. A incapacidade para compreender, por parte do receptor, é interpretada como ambiguidade, por parte do emissor, e a ambiguidade como mentira. Salta então o justiceiro alarve, a denunciar a mentira.
Mas bom. Isto vinha a propósito de morcelas. Lá estavam, cinzentas, com a tripa inteira, o cheiro - antigo - característico do produto suíno, com que desafiam um fiel, com que não tomam reféns. A mesura dos elementos mais rudimentares, de há centenas (milhares?) de anos: o sangue, a gordura.
Absolutamente deliciosas. A morcela é, para mim, dos pormenores mais brilhantes da nossa gastronomia. Talvez haja algo na sua sazonalidade, na sua validade, que torne o seu consumo ainda mais satisfatório - pode ser comida apenas algumas semanas depois da morte do porco. É aproveitar, que daqui a pouco já não há... O típico sentimento ansioso de um português.
Não é fácil de digerir... mas para isso há o bom vinho, e tudo o resto que pertence ao 'canon' da refeição, como a cultivaram neste país.
Talvez seja daquelas coisas que, quando nos queixamos da vida, escusemos a lembrar - com alguma gravidade. Quantas refeições excelentes já provámos? Certamente mais que muitos dos nossos antepassados... Nisso, realmente, nunca mudamos: por mais que tenhamos tanto mais bom, dele nos esquecemos de imediato, e do que não temos nos queixamos infinitamente.
Que maldição, esta, a de ser humano. Mas as bençãos tudo fazem valer a pena.