É uma característica genética da minha geração a lide com um mundo virtual, por oposição ao real, físico, multi-sensorial, arcaico. Todos nós nos vemos confrontados com o uso de telemóvel (falando ou escrevendo), do PC, da Internet. Tivemos que desenvolver essas literacias, seja por pressão dos pares, necessidade de trabalho, ou mera curiosidade.
Acontece que é também muito da minha geração um certo sentimento “pós-virtual” nos relacionamentos. Quer dizer, há um código, e uma soltura de ânimos que o telemóvel (sobretudo na sua versão SMS), o chat online (de que o exemplo mais popular é o MSN, precedido pelos mIRCs) e mesmo, mais recentemente os blogs. Esse à vontade existe num código escrito, que também foi adaptado para os próprios meios, e que, vazio da voz, da denúncia do inconsciente no nosso tom de voz, liberta o próprio inconsciente sobre a capa da ambiguidade. Há todo o tempo para escolher as palavras, para se dizer exactamente aquilo que se quer.
O domínio sobre esse código escrito – tomemos como exemplo o que se escreve no MSN – varia com as pessoas. E o registo que imprimimos ao que escrevemos aí é também diferente do nosso registo oral. Toda a variabilidade que permite o código de sociabilidade cibernético, dá margem de manobra, cria um microcosmos de ambiguidade, que é muito bem explorado em questões mais delicadas, a que as pessoas se escusam de enfrentar pela conversa vis a vis. Um exemplo muito simples é uma declaração de interesse amoroso, antigamente transmitida por bilhetinhos ou poemas, e hoje possível por este meio. É mais fácil a um rapaz fazer o “beating about the bush”, explorando, indagando, saber se pode “andar “ com uma rapariga pela via cibernética. É muito mais cómodo que “tê-los no sítio” para convidá-la in loco, sujeitando-se a uma rejeição mais explícita (e existe a noção de que as raparigas não gostam também dessa abordagem directa). Muitos rapazes coleccionam endereços de MSN e anseiam por aqueles das raparigas que lhes interessam (às vezes aproveitando uma oportunidade, como um trabalho em conjunto, algo que se organiza). A partir daí “ela” está fisgada, e será sujeita a uma série de conversas “da treta”, para aferir a sua disponibilidade, o seu eventual interesse.
Mas, volto ao fundamental, o mais interessante, para mim, é esse sentimento de pós-virtual. Não só nos relacionamentos afectivos. Em todo o tipo de relacionamentos. Quer dizer – há uma lacuna entre a confissão virtual e a confissão em conversa, directamente. Duas pessoas podem estar a falar muito tempo no MSN sobre temas importantes, expondo-se bastante, criando afinidades. No da seguinte encontram-se e existe esse sentimento “pós-virtual”. É certo que pode existir igualmente, por exemplo, depois de uma saída à noite, em que se libertam os espíritos e se dizem coisas mais honestas, mais profundas que o normal. No dia a seguir há uma correcção, um fingido esquecimento talvez. Mas, como disse, essa distensão do espírito é, exactamente, a marca do relacionamento virtual. E esse sentimento, no dia seguinte, está sempre presente. Faz parte da inteligência emocional de uma pessoa saber fazer a ponte entre a conversa intimista da noite anterior e o dia de trabalho do dia seguinte. A regra geral é continuar com outros temas, aproveitando a cadência dos requisitos profissionais, como se nada tivesse sido dito.
Acho muita piada a este constrangimento que se cria, mais ainda ao esforço para “passar por cima”. E à influência que o registo dessas revelações tem na postura das pessoas connosco. Dou o meu exemplo. Não é que utilize muito o MSN, ou mesmo o SMS, mas constato que, por vezes, é já incorporada na opinião dos outros sobre mim os artigos que escrevo neste blog*. Surge já em conversas referência a um ou outro post. Suponho mesmo que, no caso de um blog é mais inescapável, porque o registo está lá e é público.
Não sei se alguma vez repararam nesta décalage entre a conversa escrita, ou a mensagem escrita, e a vivência de todos os dias. Mas seguramente, sendo utilizadores destes meios, todos a terão sentido. Há um pós-virtual, dentro do esforço de sociabilidade, que entra em confronto com o à vontade e absoluto controlo do que se diz no virtual. Talvez esteja aí parte do sucesso do virtual – dizemos aquilo que queremos, controlando tudo a cada segundo. Liberdade e controlo absoluto. Difícil de superar, não acham?