Estás preocupado com a crise. Não sabes bem exactamente o que é, como te vai afectar. É uma crise estúpida. Caramba, tu bem avisavas. Mas aconteceu. E há sempre os banqueiros que se safam escandalosamente, os políticos para quem fica tudo na mesma. Um nojo. Mais um suspiro. Mais um dia.
Chegas de manhã ao teu emprego absolutamente miserável e lixado com a vida. 'Isto é tudo uma m****!' dizes para ti depois de cumprimentares cordialmente o Sr. Carlos, porteiro.
Quando chegas ao teu andar, finalmente, vais fazer a única melhoria possível dessa manhã - beber café. Descobres que ('f***-se!!!') a singela máquina escolheu esse dia para deixar de funcionar. Já não convém saíres, porque, assim que entraste o teu chefe disse: 'Bom-Já-Tens-Ecomenda-Antes-Dez-Era-Para-Ser-Depois-Mas-Mudou-Prazo-Senão-Lixados. Já bebeste café? Vai lá, mas não te demores'.
Sabes que a vida está complicada quando não te sobram asneiras para dizer numa manhã. Lembras-te do teu avô que vivia no Campo - isso sim, era vida. Que pena o ecrã do computador não poder falar contigo. É estranho não o fazer, por ser um tão fiel amigo, e agora precisavas das palavras de um fiel amigo. Talvez a sua qualidade seja a de estar calado perante os teus caprichos. Talvez esse silêncio o torne agora tão inútil.
Mas, por algum milagre, além do monitor os teus colegas estão contentes. Estranhamente felizes, num tom de conversa ameno. Luminosos. Pegas em ti, e juntas-te a eles. És bem recebido. Ausentas-te só um segundo com uma piada, e fazes a encomenda que era preciso. Um instante. Quem diria. Tornas à conversa. Sentes as tuas dores a deixarem - como se nada fosse - os teus ombros. Ris-te. E percebes que a todos une, de alguma forma, e para tua surpresa, o espírito do Natal.
No final do dia, renovado pelo convívio no escritório como nunca antes, despedes-te de todos. 'Feliz Natal' para um lado, 'Bom Ano' para o outro, até mesmo um 'Não, se calhar são vocês que ganham o campeonato este ano'.
Toda a gente ri. Mas então alguém se lembra de acrescentar ao generoso 'Divirtam-se!' sorridente, um acrescento de verdade, que faz cair o sorriso: 'Se conseguirem, com esta crise... Vamos lá ver' [olha o chão].
Ias dizer uma asneira. Duas até. Tinha que ser, não podia ninguém não o lembrar. Era só mais um bocado, estavas quase a sair. Não ias ficar com o espírito maculado de novo.
Mas que se lixe. Decidiste ir para casa com o espírito de Natal. O espírito da crise virá, sabes bem. Mas há sempre um Natal a seguir a cada crise, dentro de cada crise. Há sempre um dia, pelo menos, em que ninguém ganha ou perde. Natal é natal. Não está cotado, não é emprestado, e ninguém te o pedirá.
Mas decidiste aceitá-lo sem remorsos, contra ti talvez. E acabas a pensar que, talvez, quem sabe, essa seja a melhor definição para o que é o Natal.