domingo, março 15, 2009

Momentos 15

O sr. Cordeiro era um ovino singelo, de quem se dizia com justiça, e graça miúda: 'não faz mal a ninguém!'. Gostava de acordar cedo pela manhã, mastigar um punhado de erva 'nem demasiado verde, nem demasiado seca', ler placidamente o 'Correio da Lã'. Nem sempre dormia bem, e tinha que estar atento à sua saúde, por via das dúvidas.

O seu trabalho era simples, sem complicações. Trabalhava num notário perto de sua casa. Era pontual. Dizia mesmo a brincar que as outras ovelhas poderiam acertar os relógios do escritório pela sua entrada, mas nenhum dos seus colegas percebia bem quem fora o 'Manuel Cante' nem a 'Quónisbeaurgue' de que falava.

Era um bom profissional, e os utentes gostavam dele. Tinha sempre um sorriso - "é o meu carimbo", gostava de dizer - para oferecer com um papel. Não se lhe conheciam romances. Constava que a sua vida era mesmo aquilo que parecia: o de ajudar a manter a paz no rebanho, a felicidade de todas as ovelhas, perdoando as ovelhas negras, evitando que os jovens borregos seguissem por maus caminhos. Era uma alma em paz, ou uma paz de alma.

Mas tudo mudaria aquando dos ataques dos lobos. Em raides sucessivos, predavam sobre o rebanho. O pânico instalou-se, a vida quotidiana mudou. Tudo agora parecia um interlúdio até ao próximo ataque, de que ninguém saberia o momento. As ovelhas passaram a ser consumidas pelo medo omnipresente, e a tensão envenenou o dia-a-dia.

Os anos passavam agora mais pela cara de todos, pela do sr. Cordeiro também. Apesar de tudo, ia tentando fazer a sua vida nos mesmos exactos moldes, tentando ser agradável - não prescindindo dos seus sorrisos. Essa simpatia e placidez, no entanto, capturava agora em si a ansiedade dos seus colegas. "Como pode ele estar com aquela cara da forma que as coisas estão?", diziam. E por isso, tão somente, o sr. Cordeiro passou a sofrer discriminação e assédio por parte dos seus colegas.

"O que é que queres, meu filho? Estás à mão de semear...", disse-lhe um dia seu tio, o dr. Carneiro. Mas o sr. Cordeiro recusava a acomodar-se, seguir o mesmo estado de pânico dos colegas. Fazia até maior ênfase em partilhar o seu amor pela vida, e insistia no mesmo hábito de não criar inimigos. "Mas olha que uma ovelha sem inimigos, é como se não existisse..." avisá-lo-ia seu tio.

No turbilhão de emoções, e do desespero convertido em pequena agressão, o sr. Cordeiro lembrou-se de uma história muito antiga, que lhe contara o seu bisavô, um ovino da velha guarda, sério e vetusto, que tivera a fortuna de conhecer enquanto borrego.

Recordava-se desse avô lhe confiar um segredo bem guardado na família. Dizia ele que os Cordeiros provinham de uma linhagem muito antiga, e que inclusive tinham sangue caprino muito distante. Não, porém, um sangue caprino qualquer, mas de um caprino famoso, que a História consagraria como "Bode Expiatório".

Pensou se seria essa herança genética a lançar sobre si a fácil pequena agressão. Afinal, os destinos não mudavam com os tempos. Às vezes sonhava que estava a ser julgado no tribunal do rebanho, em que alguém dizia: "Meretíssimo: este ovino que tendes perante vós é o culpado da nossa desgraça". "Mas como, sr. advogado, se ele não é nenhum lobo?", replicava o juíz. "Pois bem, meretíssimo - mas também não é nenhum cão de guarda. Ninguém pode ter uma aparência tão tranquila e plácida perante os acontecimentos correntes, se não for ele mesmo parte do problema!". "Agarrem-no! Agarrem-no!", gritavam então as ovelhas exaltadas na sala de audiência. "Ordem no tribunal! Ordem no tribunal!", exigia o juíz martelando sobre a mesa.

O sr. Cordeiro acordava então, sobressaltado, a lã suada. Fitava o céu do curral alumiado pela parca luz do luar, recuperava os nervos, e tentava dormir novamente, contando seres humanos.