sexta-feira, agosto 31, 2007

Os Meus Prazeres 7


Agora que passa na RTP2, à tarde, vejo o ocasional episódio de Tintim. E porque nao? Nunca deixei de gostar de desenhos animados, ou melhor, de banda desenhada. Por exemplo, ando a adiar a descoberta de Corto Maltese há tempo demais. Mas Tintin é especial. Há algo em Tintim de uma nobreza de juventude que é difícil de enquadrar mais tarde na vida. Para mais nem toda a gente a sente, suponho.

Nem toda a gente sente esse desejo intenso de aventura, correr o mundo. O mundo é imenso e estranho (hoje um pouco menos estranho, está tudo descoberto, mas o exotismo é também algo subjectivo - há pormenores que sao só nossos), mas vamos seguros. Vamos seguros porque vamos com ele, com eles, com aqueles amigos de infância de coraçao tao puro como nós, de curiosidade tao intensa como nós, que nunca nos abandonarao, nunca nos deixarao mal. Somos almas dotadas desse conceito estranho para os outros: a boa-fé, a "goodwill". Partilhamos sonhos e experiências. E escapamos à justa de perigos vários. Mais tarde, recolheremos à nossa reclusao, distante do bulício das massas, fazer a nossa vida, e um dia, à lareira, recordaremos essas aventuras e escapadelas, sentindo o perfume da juventude no nariz enrugado pela velhice. Aí entao chamamo-nos "mon vieux" (mantivemo-nos sempre amigos) e congratulamo-nos pela nossa coragem, por mais que tenhamos perdido outras coisas...

Mas, alas, esses amigos nao existem. Existem só seres humanos, nenhum tao sonhador como nós, nenhum criando essas fantasias no seu ser, nenhum com tanta coragem para se dedicar a um sonho como nós. Nenhum tao apegado à infância como nós. Depois vem a sociedade a exigir trabalho, a "canga", a cortesia, o auto-controle; depois vêm as mulheres que nos confundem, e, finalmente, a idade adulta. Que piada tem, pergunto eu, a idade adulta? Ah, Tintim, mais vale percorrermos esse mundo de Castafiores, Rastapopolous e Oliveiras da Figueira. Vale mais sermos como tu, como o Tio Patinhas, o Zé Carioca, o Ásterix, o Tom Sawyer, o Huckleberry Finn, o Homem-Aranha. Talvez mesmo como o Wolverine, um "maverick", um desassossegado.

Nao nos podemos perder no labirinto da memória, aqueles de nós que ainda têm prazer em ter memória. Devemos ir deixando o nosso fio de Ariadne a marcar os nossos dias. Lá atrás estao os heróis, os cavaleiros, os romances, as vitórias. Lá atrás estamos nós. E algum dia faremos o caminho para trás, em jeito de balanço. Algum dia.

Aproveito para transcrever um excerto do livro "Nao Te Deixarei Morrer, David Crockett" de Miguel Sousa Tavares:

Quando eu era pequeno - muito pequeno, talvez oito ou nove anos - lembro-me de estar deitado na banheira, em casa dos meus pais, a ler um livro de quadradinhos. Era uma aventura do David Crockett, o desbravador do Kentucky e do Tenessee, que haveria de morrer na mítica batalha de Forte Álamo. Nessa história, o David Crockett era emboscado por um grupo de índios, levava com um machado na cabeça, ficava inconsciente e era levado prisioneiro para o acampamento índio. Aí dentro de uma tenda, havia uma índia muito bonita - uma "skaw", na literatura do Far-West - que cuidava dele, dia e noite, molhando-lhe a testa com água, tratando das suas feridas e vigiando o seu coma. E, a certa altura, ela murmurou para o seu prostrado e inconsciente guerreiro: "nao te deixarei morrer, David Crockett!"

Nao sei porquê, esta frase e esta cena viajaram comigo para sempre, quase obsessivamente. Durante muito tempo, preservei-as à luz do seu significado mais óbvio: eu era o David Crockett, que queria correr mundo e riscos, viver aventuras e desvendar Tenessees. Iria, fatalmente, sofrer, levar pancada e ficar, por vezes, inconsciente. Mas ao meu lado haveria sempre uma índia, que vigiaria o meu sono e cuidaria das minhas feridas, que me passaria a mao pela testa quando estivesse adormecido e me diria: "nao te deixarei morrer, David Crockett!". E, só por isso, eu sobreviveria a todos os combates. Banal, elementar.

Porém, mais tarde, comecei a compreender mais coisas sobre as emboscadas, os combates e o comportamento das índias perante os guerreiros inconscientes. Foi aí que percebi que toda a minha interpretaçao daquela cena estava errada: o David Crockett representava sim a minha infância, a minha crença de criança numa vida de aventuras, de descobertas, de riscos e de encontros. Mas mais, muito mais do que isso: uma espécie de pureza inicial, um excesso de sentimentos e de sensibilidade, a ingenidade e a fé, a hipótese fantástica da felicidade para sempre. Esse era o mundo que eu tinha entrevisto nesse dia longíquo da minha infância e me cabia tentar defender o resto da minha vida. Entao, eu era antes a índia, que nao podia deixar que se apagasse essa imagem e o seu sentido e que teria de repetir incontáveis vezes ao mais fundo de mim mesmo - lá onde jazia, inconsciente, o David Crockett - que nao o deixaria morrer."


Miguel, só mesmo tu o poderias pôr tao claro. E ao ler-te, da minha íntima concordância com cada linha lembro-me de que foi também contigo que aprendi a ler. Outro tipo de leituras, é certo, naqueles dias já distantes do colégio em que comprava o "Público", quando tinha o seu grafismo sóbrio, quando era um grande jornal, quando nao vestia as pantufas de um marketing amorfo e massificado. Quando a tua página de opiniao era para mim religiosa. Excelente exposiçao do assunto, límpido português. Aproveito para te agradecer, antes que me esqueça.

Tu sabes, Miguel. Tu sabes que se a coisa chegar a tanto, se eles nos chatearem demais, se tudo aquilo que achamos visceralmente correcto for tao inelutavelmente provado errado, tu sabes. Sabes que pegamos em cada um de nós, e vamos directos à nossa doce solidao. Ninguém como nós mesmos para nos compreender. O sol nasce além daquelas montanhas, e há manhas que têm um ar fresco, uma luz, uma sensaçao de pureza e renascença que eles nunca saberao apreciar.

E nesse dia cantaremos, tropeçando na letra, assobiando somente talvez,: "just my rifle, my pony and me".


(vídeo descoberto no Abrupto)