sábado, março 07, 2009

Gula

Eu sou guloso. Quem me vislumbra pensa por vezes "aquele deve ser guloso". Quem fala comigo confirma: "ui - este é guloso...". Quem me conhece, enfim, sabe - eu sou guloso.

A gula é um pecado muitíssimo interessante, na minha opinião. É mais... criativo. Luxúria, ira, inveja? Isso é básico - qualquer um vai por aí. Mas nem todos apreciam a gula. Até por vaidade , afinal.

Certo é que a afluência calórica que caracteriza a vida nas sociedades ocidentais modernas tornou a gula um pecado banal, e exagerou-o ainda mais. Ficou um parente pobre dos pecados. Mas eu não penso, e escuso referir-me à gula, no extremo patológico. Mais bem, é ao médio-termo que me refiro. Ao pecado controlado de cada dia. Sem extremos, mas sem cedências.

Pessoalmente, concebo a gula como pecado de homem inteligente - sem estar com isto a elogiar a minha pessoa (não, não, a sério). Como disse, se ponderada, é mais subtil pecado, e os seus cultores tendem a favorecer a criatividade, a diversidade (de sabores), a refinação (não me refiro a 'fast food', atenção).

Talvez a gula de que eu fale seja 'elitista', que é como chamam hoje ao que eu digo gula campesina de sempre, aquela com bom gosto. A gula do rural puro nunca foi contaminada pelos novos produtos de plástico. Antes, perdurou no amor aos mesmos produtos, sobretudo àqueles que são de fabrico exigente, que exigem mais esforço, e que só merecem connaisseurs.

Para um guloso, Portugal é, realmente, um país abençoado. E sou eu tantas vezes a criticá-lo, (ui... como Portugal certamente a mim, que eu sou também bastante criticável), mas... tem muito mais sabor que outros países - façamos-lhe essa justiça.

Desde enchidos excelsos, até leitão crepitante com espumante adstringente, até a uma empada de galinha com uma massa folhada leve, deliciosa, até um cabrito no forno, luzidio, escuro, pecaminosamente tenro, até um arroz de marisco vindo do mar sincero, para nós, com o seu caldo fumegante, manto dourado sob o arroz, camarões, amêijoas, até as sardinhas cuja pele se retira de uma só vez, e que lançam um fumo chamariz, num silencioso toque a reunir - Portugal é um sonho para o gourmet.

Mas voltando à gula: é um pecado de preservação. É um pecado de quem resguarda sabores de outros tempos da sua vida. E, logo, de quem resguarda esses outros tempos, de quem tem também o sabor a memórias. Aliás pergunto-vos, que melhor para o fluir da memória de uma vida que o revisitar das refeições?

Eu mesmo lembrei-me de escrever este post depois de redescobrir um sabor de outro tempo. É - mesmo em coisas tão simples como línguas de gato, a gula se assume, a gula faz a sua função.



Não, eu sou um guloso. De todos os tipos e feitios. E a gula - como a preguiça - não me parece, realmente, o pior pecado...