segunda-feira, dezembro 08, 2008

Cuidado Não Te Apanhem a Chorar

Dedicado às pessoas que andam pelo Metro de Lisboa, arrastando cansaços, por vezes escorregando olhares. Em compras, ao frio, ao desespero. Quem sabe no ventre da Terra que mundo ainda há lá em cima? No metro o país é o mesmo - e não se pode olhar directamente para ele. É uma mulher deslumbrante, que se não pode olhar. É uma quimera que sai, nesta, naquela estação - nunca a nossa. Nós devemos continuar, sem olhar. E então, mesmo no ventre da terra, há uma luz que espanta os olhos que se desviam, e não sabemos se é já a tempestade. Não - foi só um relêmpago nos carris. Foi só electricidade, o mesmo de sempre. E, como sempre, aquela rapariga esgueirou-se na outra estação. Não deu para lhe dizer que talvez fosse ela Portugal, talvez levasse ela o país. Não deu para lhe dizer. Estranhamos as pessoas estranhas do metro. E continuamos. Ao frio, e à incerteza. Em cada qual. O silêncio é o pacto que fizemos, é o requiem por qualquer coisa, ou espera em respeito de qualquer coisa. E Portugal, de repente - como o relâmpago que parecia - talvez não seja aquela bela rapariga, que olhou em diante. Talvez sejamos nós, que escusamos olhar-nos. Talvez Portugal seja magnífico, talvez uma maldição. Talvez nunca o saibamos - talvez Portugal seja a estação a que nunca vamos, embora saibamos bonita. Embora tenhamos sempre a convicção de que, se for preciso, lá saberemos ir ter.

Dedicado a essas pessoas de hoje. Poema de Jorge Sousa Braga.

Portugal
Eu tenho vinte e dois anos e tu às vezes fazes-me sentir como se tivesse
oitocentos
Que culpa tive eu que D. Sebastião fosse combater os infiéis ao norte de
África
só porque não podia combater a doença que lhe atacava os órgãos genitais
e nunca mais voltasse
Quase chego a pensar que é tudo uma mentira
que o Infante D. Henrique foi uma invenção do Walt Disney
e o Nuno Álvares Pereira uma reles imitação do Príncipe Valente
Portugal
Não imaginas o tesão que sinto quando ouço o hino nacional
(que os meus egrégios avós me perdoem)
Ontem estive a jogar póker com o velho do Restelo
Anda na consulta externa do Júlio de Matos
Deram-lhe uns electro-choques e está a recuperar
àparte o facto de agora me tentar convencer que nos espera um futuro de
rosas
Portugal
Um dia fechei-me no Mosteiro dos Jerónimos a ver se contraía a febre do
Império
mas a única coisa que consegui apanhar foi um resfriado
Virei a Torre do Tombo do avesso sem lograr uma pérola que fosse
das rosas que Gil Eanes trouxe do Bojador
Portugal
Vou contar-te uma coisa que nunca contei a ninguém
Sabes
Estou loucamente apaixonado por ti
Pergunto a mim mesmo
Como me pude apaixonar por um velho decrépito e idiota como tu
mas que tem o coração doce ainda mais doce que os pastéis de Tentugal
e o corpo cheio de pontos negros para poder espremer à minha vontade
Portugal estás a ouvir-me?
Eu nasci em mil novecentos e cinquenta e sete Salazar estava no poder nada
de ressentimentos
um dia bebi vinagre nada de ressentimentos
Portugal
Sabes de que cor são os meus olhos?
São castanhos como os da minha mãe
Portugal
gostava de te beijar muito apaixonadamente
na boca

Jorge Sousa Braga