Uma das coisas curiosas em trabalhar numa farmácia é perceber a extraordinária amplitude na possibilidade do erro. Podem não acreditar, mas existe uma burocracia absolutamente insana a cumprir - o estalinismo no seu melhor - por causa das comparticipações a receber do Estado. A probabilidade de errar em vários aspectos - sejam de ordem burocrática, sejam na vital correspondência do medicamento com a receita, e na melhor terapia para o doente - é enorme.
Juntemos a isso uma farmácia cheia de gente a olhar para nós, com toda a pressa para sair dali, e o cansaço por estar constantemente em pé, e eis que a consciência, o dever de fazer tudo bem, gera um stress muito próprio. A que, devo avisar, os cardíacos se devem escusar. Acreditem. É como fazer malabarismo. No ar estão suspensas as bolas de receita correcta, comparticipações a fazer, entidades oficiais, número de medicamentos, objectivo, dosagens, stocks, preços, indicações, dinheiros, facturas, etc., etc.. E nós não podemos deixar cair nada no chão. Nada mesmo. E parece que a nossa formação está tão longe de tudo aquilo que assusta. E depois há a cortesia profissional, a defesa contra a chico-espertice alheia, a estranheza pelas pessoas, de tipo tão variado, que é preciso atender. Mas há momentos engraçados, pessoas muito simpáticas, incipientes aplicações de raciocínio clínico.
A esse propósito, contudo, devo dizer que esta é realmente uma era líquida para a Medicina, e a Clínica. As certezas, os dogmas parecem esfarelar-se. Façamos marcha-atrás. Antes o médico era reverenciado e as universidades guardiãs do Saber. Hoje tudo está democratizado, e o doente sabe (ou pensa que sabe) muito sobre a sua condição, e tende a bombardear o médico, ou o farmacêutico com as perguntas mais ridículas. Eu sei lá se não há problema em comer abacaxi às 3 da tarde quando faz esse medicamento! O problema é que a honestidade é algo de fundamental nesta área. Um erro é fatal, e nestes pormenores ridículos existem por vezes questões de relevo. É como se 99% das questões fossem, com efeito, inúteis, mas o 1% fosse perigoso demais para as ignorar. Uma falta de atenção, concentração, esforço de raciocínio em Saúde pode ser fatal.
Mas eis que, ridiculamente, em simultâneo, existe cada vez menos dúvida filosófica, capacidade de interpelação a nós mesmos se a regra está certa ali, se a parte ou o todo são o problema. A ignorância, de facto, tem por filha dilecta a arrogância. É tão triste ver fugas para a frente, um "não sei ao certo, mas aposto que é assim, e ponho todo o meu ser nisso. Ai de quem contestar." Tanto pé de barro...
Falta talento, enfim - e isso diz tudo. E o talento na Saúde das pessoas é algo de primordial. Perguntem à maioria da população portuguesa, e ela vos dirá o quão preza essa arte. Eu tinha a mania que tinha essa capacidade de raciocínio em mim, e fiz a minha função. Candidatei-me antes a Medicina, e não fui aceite. Tenho a minha consciência tranquila. Nunca poderei ser enquanto farmacêutico o que seria enquanto médico - faltaram os mestres - mas posso ser mais livre, ter uma vida totalmente diferente. Às vezes, olhando a maneira como as coisas são feitas, ainda tenho a impressão que estejam fundamentalmente erradas... Mas já não é a mim que compete mudá-las. Convém somente ser o melhor farmacêutico possível, puxar por toda a qualidade, mesmo sem o reconhecimento social que tem (e justamente) um médico.
São assim difíceis e intrigantes estes dias. Mas o treino é de ouro. E está quase completo.
Juntemos a isso uma farmácia cheia de gente a olhar para nós, com toda a pressa para sair dali, e o cansaço por estar constantemente em pé, e eis que a consciência, o dever de fazer tudo bem, gera um stress muito próprio. A que, devo avisar, os cardíacos se devem escusar. Acreditem. É como fazer malabarismo. No ar estão suspensas as bolas de receita correcta, comparticipações a fazer, entidades oficiais, número de medicamentos, objectivo, dosagens, stocks, preços, indicações, dinheiros, facturas, etc., etc.. E nós não podemos deixar cair nada no chão. Nada mesmo. E parece que a nossa formação está tão longe de tudo aquilo que assusta. E depois há a cortesia profissional, a defesa contra a chico-espertice alheia, a estranheza pelas pessoas, de tipo tão variado, que é preciso atender. Mas há momentos engraçados, pessoas muito simpáticas, incipientes aplicações de raciocínio clínico.
A esse propósito, contudo, devo dizer que esta é realmente uma era líquida para a Medicina, e a Clínica. As certezas, os dogmas parecem esfarelar-se. Façamos marcha-atrás. Antes o médico era reverenciado e as universidades guardiãs do Saber. Hoje tudo está democratizado, e o doente sabe (ou pensa que sabe) muito sobre a sua condição, e tende a bombardear o médico, ou o farmacêutico com as perguntas mais ridículas. Eu sei lá se não há problema em comer abacaxi às 3 da tarde quando faz esse medicamento! O problema é que a honestidade é algo de fundamental nesta área. Um erro é fatal, e nestes pormenores ridículos existem por vezes questões de relevo. É como se 99% das questões fossem, com efeito, inúteis, mas o 1% fosse perigoso demais para as ignorar. Uma falta de atenção, concentração, esforço de raciocínio em Saúde pode ser fatal.
Mas eis que, ridiculamente, em simultâneo, existe cada vez menos dúvida filosófica, capacidade de interpelação a nós mesmos se a regra está certa ali, se a parte ou o todo são o problema. A ignorância, de facto, tem por filha dilecta a arrogância. É tão triste ver fugas para a frente, um "não sei ao certo, mas aposto que é assim, e ponho todo o meu ser nisso. Ai de quem contestar." Tanto pé de barro...
Falta talento, enfim - e isso diz tudo. E o talento na Saúde das pessoas é algo de primordial. Perguntem à maioria da população portuguesa, e ela vos dirá o quão preza essa arte. Eu tinha a mania que tinha essa capacidade de raciocínio em mim, e fiz a minha função. Candidatei-me antes a Medicina, e não fui aceite. Tenho a minha consciência tranquila. Nunca poderei ser enquanto farmacêutico o que seria enquanto médico - faltaram os mestres - mas posso ser mais livre, ter uma vida totalmente diferente. Às vezes, olhando a maneira como as coisas são feitas, ainda tenho a impressão que estejam fundamentalmente erradas... Mas já não é a mim que compete mudá-las. Convém somente ser o melhor farmacêutico possível, puxar por toda a qualidade, mesmo sem o reconhecimento social que tem (e justamente) um médico.
São assim difíceis e intrigantes estes dias. Mas o treino é de ouro. E está quase completo.