Outro dos cromos portugueses favoritos é o nosso 'Sancho Pança'. Calma - dizes bem. Era espanhol, estás lá. Mas de certezinha que foi inspirado aqui em nós e a gente já não se lembra. Já se sabe como são os espanhóis. A gente forma um país, lá se lembram eles de fazer um também. Vai a gente feitos tontos pelos mares fora, e achamos meio mundo, pois seguem eles a mesma ideia. Fizemos o 25 de Abril, com toda a confusão, pois... lá foram eles inteligentes o suficiente para não repetir os nossos erros. Vá lá.
Mas servimos muita vez de ensaio para eles, e a coisa não vale. Por isso digo que, com toda a probabilidade, o D. Quixote e o Sancho Pança podiam ter sido portugueses, ou o Cervantes ter copiado o 'Livro das Aventuras Mui Curiosas, Da Galanteria e Dos Amores de D. Afonso Quintano, Fidalgo da Pernancha (E Seu Fiel Escudeiro Sancho Bragança)', escrito por Miguel de Abrantes, e lamentavelmente perdido num incêndio, por volta do séc. XV.
O certo é que não falta por aí um ou outro 'Sancho Pança', versão tuga. É um 'fura-vidas', um 'Zé Pequeno' (não confundir com o 'Zé Piqueno' da 'Cidade de Deus'), doutorado na ratice e na manha. É a modos que um encantador de serpentes. Anda aí a flanar no mundo da gente grande e preocupada, indo buscar 'o seu', a sua vitoriazinha, a sua satisfaçãozinha, de que os outros não sabem, e que, quando muito, partilha somente, com os seus companheiros de profissão, escudeiros da cidade. É quando vão todos ao Casino de Lisboa que comparam as suas histórias de (fura-)vida.
Mas o Sancho de hoje - vamos chamar-lhe 'Sancho Barriga-de-Cerveja', na verdade, continua o mesmíssimo do 'Livro das Aventuras...' do Miguel de Abrantes. E na vida profissional, naturalmente, trabalha com um tal de Dr. Quixote.
O Dr. Quixote vem de boas famílias e tem gostos e exigências refinadas. Tem ambições que o Sancho não compreende bem - mas que também não é dele compreender, afinal. Basta dizer-lhe que sim, que uma Dulcineia é uma mulher de se morrer por ela (mesmo que morrer, consistindo tal em grande incómodo, seja algo que Sancho não faz por ninguém), e que é preciso sempre ir em frente carregar contra os inimigos (mesmo que ele saiba que os inimigos são moinhos de vento).
Mas - lá está. O Dr. Quixote não precisa de encontrar o que quer que seja. Ele precisa é de pensar que encontra. E por isso lá vai Sancho dando-lhe ânimo, a sua fidelidade. Confirma-o com muitos 'sim, senhor' e 'tem toda a razão', oferecendo as suas opiniões 'embora não saiba nada, ao contrário do Sr. Dr.', e que, regra geral, vão sempre no mesmo sentido das opiniões do Dr. Quixote - tal é a amizade que os une. E é justamente no interesse dessa amizade, de que se nutre o alto espírito de Dr. Quixote, quando fala sobre 'os gregos', ou sobre 'a Civilização', que Sancho procura preservar quando explica que terá sido, certamente, a Justina - mulher a dias - a levar o toucinho da arca para o marido, quando na realidade é Sancho que se 'abotoa' com ele, para as deliciosas pândegas antes da visita ao Casino de Lisboa.
Bem quer o Dr. Quixote saber do toucinho. Ele passaria fome pela sua amada. Nem nota. No fundo, o Dr. Quixote pensa que Sancho 'nunca atingirá o seu nível mental', e Sancho pensa que o Dr. Quixote 'nunca sonhará que foi ele a surripar o toucinho'. Eis como uma amizade permite, de uma lado, um ego pleno, do outro, uma barriga cheia.
Não, esta é uma amizade forjada nos céus. Assim haja sempre, enquanto houver Portugal, para cada Dr. Quixote, um Sancho Barriga-de-Cerveja.
Mas servimos muita vez de ensaio para eles, e a coisa não vale. Por isso digo que, com toda a probabilidade, o D. Quixote e o Sancho Pança podiam ter sido portugueses, ou o Cervantes ter copiado o 'Livro das Aventuras Mui Curiosas, Da Galanteria e Dos Amores de D. Afonso Quintano, Fidalgo da Pernancha (E Seu Fiel Escudeiro Sancho Bragança)', escrito por Miguel de Abrantes, e lamentavelmente perdido num incêndio, por volta do séc. XV.
O certo é que não falta por aí um ou outro 'Sancho Pança', versão tuga. É um 'fura-vidas', um 'Zé Pequeno' (não confundir com o 'Zé Piqueno' da 'Cidade de Deus'), doutorado na ratice e na manha. É a modos que um encantador de serpentes. Anda aí a flanar no mundo da gente grande e preocupada, indo buscar 'o seu', a sua vitoriazinha, a sua satisfaçãozinha, de que os outros não sabem, e que, quando muito, partilha somente, com os seus companheiros de profissão, escudeiros da cidade. É quando vão todos ao Casino de Lisboa que comparam as suas histórias de (fura-)vida.
Mas o Sancho de hoje - vamos chamar-lhe 'Sancho Barriga-de-Cerveja', na verdade, continua o mesmíssimo do 'Livro das Aventuras...' do Miguel de Abrantes. E na vida profissional, naturalmente, trabalha com um tal de Dr. Quixote.
O Dr. Quixote vem de boas famílias e tem gostos e exigências refinadas. Tem ambições que o Sancho não compreende bem - mas que também não é dele compreender, afinal. Basta dizer-lhe que sim, que uma Dulcineia é uma mulher de se morrer por ela (mesmo que morrer, consistindo tal em grande incómodo, seja algo que Sancho não faz por ninguém), e que é preciso sempre ir em frente carregar contra os inimigos (mesmo que ele saiba que os inimigos são moinhos de vento).
Mas - lá está. O Dr. Quixote não precisa de encontrar o que quer que seja. Ele precisa é de pensar que encontra. E por isso lá vai Sancho dando-lhe ânimo, a sua fidelidade. Confirma-o com muitos 'sim, senhor' e 'tem toda a razão', oferecendo as suas opiniões 'embora não saiba nada, ao contrário do Sr. Dr.', e que, regra geral, vão sempre no mesmo sentido das opiniões do Dr. Quixote - tal é a amizade que os une. E é justamente no interesse dessa amizade, de que se nutre o alto espírito de Dr. Quixote, quando fala sobre 'os gregos', ou sobre 'a Civilização', que Sancho procura preservar quando explica que terá sido, certamente, a Justina - mulher a dias - a levar o toucinho da arca para o marido, quando na realidade é Sancho que se 'abotoa' com ele, para as deliciosas pândegas antes da visita ao Casino de Lisboa.
Bem quer o Dr. Quixote saber do toucinho. Ele passaria fome pela sua amada. Nem nota. No fundo, o Dr. Quixote pensa que Sancho 'nunca atingirá o seu nível mental', e Sancho pensa que o Dr. Quixote 'nunca sonhará que foi ele a surripar o toucinho'. Eis como uma amizade permite, de uma lado, um ego pleno, do outro, uma barriga cheia.
Não, esta é uma amizade forjada nos céus. Assim haja sempre, enquanto houver Portugal, para cada Dr. Quixote, um Sancho Barriga-de-Cerveja.