1º Caso
Há dias pediram-me um livro para fotocopiar. Tendo nascido entre livros, tenho um respeito ancestral pelo objecto. Sou da tribo que sente o cheiro, o tacto, que detecta os matizes nas folhas, às vezes mesmo na letra. Ou, pelo menos, era - que hoje, não sei se condicionado pelo meu curso, se por outras razões, vejo-me a ler bem menos que aquilo que gostaria. Mas sobre o prazer da colecção de conhecimento, de vidas, nas nossas mãos, sobre essa quase luxúria do livro tentarei discorrer noutro post - que o merece.
Tenho respeito pelo livro, dizia. Acontece que no outro dia pediram-me justamente algo que eu detesto particularmente (e eu até nem detesto muitas coisas particularmente): fotocopiar um livro. Antigamente fotocopiar um livro era um acto inconcebível para mim: eu podia poupar em muitas coisas, (e, acreditem, nunca fui muito gastador, ou então fui inconsciente), mas preferia sempre investir no livro a fotocopiá-lo. É claro que, havendo bibliofilia por casa, as coisas eram mais fáceis de enquadrar, mas, ainda assim, acabava por ser uma opção.
Isto no que respeita a fotocópias para mim. Mas é maior o problema quando se trata de fornecer fotocópias aos demais a partir de livros meus. É que... o livro não é o mesmo. Eu costumava dizê-lo "esventrado" pela fotocopiadora. As páginas começavam a descolar de forma às vezes irreversível, e o livro parecia mais volumoso, mudado, estranho aos olhos de quem dele tanto gostava. É como ver perante nós um amigo querido que fez algo muito estúpido, que comprometeu o seu ser, a pessoa que nos era familiar (só um verdadeiro bibliófilo aceita esta comparação desmesurada).
Portanto, quando me pediram para fotocopiar um livro meu, essa alergia voltou. Não tão intensa como antes - suponho que ando menos livresco e mais dado ao compromisso nesta questão. Ainda assim, pedi para só o emprestar em último caso. Houve um colega que se disponibilizou, e eu expus-lhe a situação, com a cortesia e honestidade devida, disposto, no limite, a rever a minha posição. Felizmente ele é muito mais racional que eu nessa matéria, e não houve qualquer problema.
2º Caso
Parte de um plano acarinhado há alguns meses, a minha irmã mais nova quer trazer a casa amigos estrangeiros que conheceu em Erasmus. Não estando eu por lá nessa altura, pensou, tomou como adquirido, que poderia usar o meu quarto para os alojar. Ora eu sei que estas coisas são importantes para ela, e, julgo eu, não tenho mais infantis prazeres de contrariar, mas... aquele espaço, sinto-o como meu, e disse-lho.
Não acho confortável a ideia de ter pessoas que não conheço por lá. De todo. Claro, para ela é tudo muito mais prático, tudo questão de mudar camas. É certo, racionalmente faz sentido. Mas, lá está, eu não sou muito racional em várias coisas. Sempre respeitei o espaço dos outros, nomeadamente o dela, e gosto que repeitem o meu. Mas, realmente, devo estar aqui contra os ventos deste tempo. São velozes, exigem o descartável, e abominam o apego. E eu gosto de algum apego.
Dou comigo a pensar nesta frase de Pacheco Pereira, neste artigo (espero não a citar descabidamente):
"A privacidade é, no seu melhor sentido, um dos adquiridos do mundo burguês, da casa, do espaço familiar ou reservado, da liberdade de mostrar ou esconder o que nos parece ser a última propriedade: o mundo próprio do ser."
Serei eu quem está a ser anacrónico, obsoleto, inflexível, precocemente envelhecido - "careta", "bota-de-elástico"? Ou ela que não está a respeitar um princípio básico, que "goes without saying"?
Dado estas duas situações, serei eu quem é socialmente disfuncional? Em confronto com todos os outros? Cultivando delicadezas risíveis, reclamando direitos hilariantes? Que insiste numa individualidade exagerada, que ninguém respeita - mas que também ninguém reclama? Com o tempo virá a resposta. Convinha não demorasse muito, para que um possa decidir se resiste ou se cede. E seguir em frente com a sua vida.
Há dias pediram-me um livro para fotocopiar. Tendo nascido entre livros, tenho um respeito ancestral pelo objecto. Sou da tribo que sente o cheiro, o tacto, que detecta os matizes nas folhas, às vezes mesmo na letra. Ou, pelo menos, era - que hoje, não sei se condicionado pelo meu curso, se por outras razões, vejo-me a ler bem menos que aquilo que gostaria. Mas sobre o prazer da colecção de conhecimento, de vidas, nas nossas mãos, sobre essa quase luxúria do livro tentarei discorrer noutro post - que o merece.
Tenho respeito pelo livro, dizia. Acontece que no outro dia pediram-me justamente algo que eu detesto particularmente (e eu até nem detesto muitas coisas particularmente): fotocopiar um livro. Antigamente fotocopiar um livro era um acto inconcebível para mim: eu podia poupar em muitas coisas, (e, acreditem, nunca fui muito gastador, ou então fui inconsciente), mas preferia sempre investir no livro a fotocopiá-lo. É claro que, havendo bibliofilia por casa, as coisas eram mais fáceis de enquadrar, mas, ainda assim, acabava por ser uma opção.
Isto no que respeita a fotocópias para mim. Mas é maior o problema quando se trata de fornecer fotocópias aos demais a partir de livros meus. É que... o livro não é o mesmo. Eu costumava dizê-lo "esventrado" pela fotocopiadora. As páginas começavam a descolar de forma às vezes irreversível, e o livro parecia mais volumoso, mudado, estranho aos olhos de quem dele tanto gostava. É como ver perante nós um amigo querido que fez algo muito estúpido, que comprometeu o seu ser, a pessoa que nos era familiar (só um verdadeiro bibliófilo aceita esta comparação desmesurada).
Portanto, quando me pediram para fotocopiar um livro meu, essa alergia voltou. Não tão intensa como antes - suponho que ando menos livresco e mais dado ao compromisso nesta questão. Ainda assim, pedi para só o emprestar em último caso. Houve um colega que se disponibilizou, e eu expus-lhe a situação, com a cortesia e honestidade devida, disposto, no limite, a rever a minha posição. Felizmente ele é muito mais racional que eu nessa matéria, e não houve qualquer problema.
2º Caso
Parte de um plano acarinhado há alguns meses, a minha irmã mais nova quer trazer a casa amigos estrangeiros que conheceu em Erasmus. Não estando eu por lá nessa altura, pensou, tomou como adquirido, que poderia usar o meu quarto para os alojar. Ora eu sei que estas coisas são importantes para ela, e, julgo eu, não tenho mais infantis prazeres de contrariar, mas... aquele espaço, sinto-o como meu, e disse-lho.
Não acho confortável a ideia de ter pessoas que não conheço por lá. De todo. Claro, para ela é tudo muito mais prático, tudo questão de mudar camas. É certo, racionalmente faz sentido. Mas, lá está, eu não sou muito racional em várias coisas. Sempre respeitei o espaço dos outros, nomeadamente o dela, e gosto que repeitem o meu. Mas, realmente, devo estar aqui contra os ventos deste tempo. São velozes, exigem o descartável, e abominam o apego. E eu gosto de algum apego.
Dou comigo a pensar nesta frase de Pacheco Pereira, neste artigo (espero não a citar descabidamente):
"A privacidade é, no seu melhor sentido, um dos adquiridos do mundo burguês, da casa, do espaço familiar ou reservado, da liberdade de mostrar ou esconder o que nos parece ser a última propriedade: o mundo próprio do ser."
Serei eu quem está a ser anacrónico, obsoleto, inflexível, precocemente envelhecido - "careta", "bota-de-elástico"? Ou ela que não está a respeitar um princípio básico, que "goes without saying"?
Dado estas duas situações, serei eu quem é socialmente disfuncional? Em confronto com todos os outros? Cultivando delicadezas risíveis, reclamando direitos hilariantes? Que insiste numa individualidade exagerada, que ninguém respeita - mas que também ninguém reclama? Com o tempo virá a resposta. Convinha não demorasse muito, para que um possa decidir se resiste ou se cede. E seguir em frente com a sua vida.